Maurício Pinheiro
O cenário da propriedade intelectual está passando por uma transformação profunda à medida que modelos de IA gerativos, como o ChatGPT, remodelam a maneira como o conteúdo é produzido e disseminado. Uma disputa legal iminente entre o The New York Times e a OpenAI trouxe à luz a intrincada interação entre a proteção de direitos autorais, o conteúdo gerado por IA e o surgimento da tecnologia blockchain como uma solução potencial.
Nas últimas semanas, as negociações entre o The New York Times e a OpenAI se intensificaram, levando à possibilidade de um processo judicial, destacando as tensões em evolução em torno da infração de direitos autorais e do conteúdo gerado por IA. No cerne da questão está a preocupação de que modelos de IA, como o ChatGPT, estejam reutilizando conteúdo original, invadindo assim os direitos de propriedade intelectual. Com empresas como a Microsoft integrando o ChatGPT em mecanismos de busca, há uma crescente preocupação de que respostas geradas por IA possam desencorajar os usuários de visitar fontes originais de conteúdo, afetando assim as receitas das organizações de mídia.
Os modelos gerativos de IA funcionam coletando dados de toda a internet, muitas vezes sem autorização explícita. Isso levanta questões sobre a legalidade da agregação de dados e sua possível violação das regulamentações de direitos autorais. A lei federal sanciona a remoção de conteúdo infrator e impõe penalidades financeiras substanciais em caso de infração.
Daniel Gervais, pesquisador de IA e especialista em propriedade intelectual, prevê que questões de direitos autorais persistirão a menos que as empresas de IA enfrentem esses desafios. Isso destaca a urgência de abordar preocupações com direitos autorais para garantir o uso justo e ético do conteúdo gerado por IA.
Enquanto o The New York Times explora possíveis soluções legais, é essencial considerar o contexto mais amplo da tecnologia blockchain. A blockchain oferece um sistema descentralizado e transparente para registrar transações, o que poderia potencialmente revolucionar a gestão de direitos autorais. Ao registrar a propriedade do conteúdo e os direitos de uso em um registro de blockchain, organizações de mídia e criadores podem garantir responsabilidade e compensação justa quando seu conteúdo é usado em modelos de IA.
Uma solução potencial vislumbra um ecossistema digital onde os direitos autorais são substituídos por registros de blockchain, promovendo um ambiente sem regulação de livre comércio na web. Através da blockchain, os criadores de conteúdo podem monetizar diretamente seu trabalho, enquanto as empresas de IA podem acessar uma ampla gama de conteúdo respeitando os direitos de propriedade.
Os precedentes legais da doutrina de “uso justo”, como o caso de digitalização de livros do Google e o caso da Fundação Andy Warhol, inevitavelmente influenciarão as futuras disputas de direitos autorais envolvendo a IA. É provável que as empresas de IA invoquem o “uso justo” como defesa, argumentando que o uso de material protegido por direitos autorais serve para fins educacionais, críticos ou de pesquisa.
Em última análise, o iminente conflito legal entre o The New York Times e a OpenAI lança luz sobre a evolução da proteção de direitos autorais na era da IA. Isso nos estimula a explorar soluções inovadoras, como a tecnologia blockchain, que possam equilibrar os interesses dos criadores de conteúdo, desenvolvedores de IA e consumidores em uma nova era de anarcocapitalismo digital. Conforme esse cenário continua a se desdobrar, esforços colaborativos são cruciais para moldar um futuro em que o conteúdo gerado por IA respeite a propriedade intelectual, ao mesmo tempo que abraça o potencial da fronteira digital.
Glossário
Doutrina de “Uso Justo”
A doutrina de “uso justo” é um princípio legal que oferece exceções às leis de direitos autorais, permitindo o uso limitado de material protegido por direitos autorais sem a necessidade de permissão do detentor dos direitos autorais. Essa doutrina reconhece que certos usos de obras protegidas por direitos autorais contribuem para benefícios sociais, como educação, crítica, pesquisa e reportagem jornalística. O “uso justo” se baseia na ideia de que nem todos os usos de material protegido por direitos autorais devem estar sujeitos a restrições rígidas de direitos autorais, uma vez que atende ao interesse público de promover a livre expressão e a inovação.
Os quatro fatores comumente considerados para determinar se um uso se enquadra no “uso justo” são:
- Propósito e Caráter do Uso: Os tribunais avaliam se o uso é transformador, ou seja, se adiciona novo significado ou valor à obra original. Usos não comerciais, educacionais ou transformadores têm maior probabilidade de serem considerados “uso justo”.
- Natureza da Obra Protegida por Direitos Autorais: A natureza da obra protegida por direitos autorais é examinada para determinar se é mais factual ou criativa em natureza. Usos de obras factuais têm maior probabilidade de serem considerados “uso justo”.
- Quantidade e Importância da Porção Utilizada: A extensão da porção utilizada em relação à obra protegida por direitos autorais como um todo é considerada. O uso de apenas uma pequena porção, especialmente se não for o “coração” da obra, tem maior probabilidade de ser considerado “uso justo”.
- Efeito no Mercado: Os tribunais analisam se o uso impacta negativamente o valor de mercado da obra original. Se o uso não substituir a obra original ou prejudicar seu mercado potencial, é mais provável que seja considerado “uso justo”.
É importante observar que o “uso justo” é um conceito legal complexo e sutil, e cada caso é avaliado individualmente. Não é um direito absoluto, mas sim uma defesa contra alegações de infração de direitos autorais. Determinar se um uso específico se qualifica como “uso justo” envolve uma consideração cuidadosa desses fatores e pode envolver processos legais. No contexto do conteúdo gerado por IA, empresas e criadores frequentemente invocam a doutrina de “uso justo” como defesa ao usar material protegido por direitos autorais em seus modelos de IA, especialmente para fins educacionais, de pesquisa ou transformadores.
Caso de Digitalização de Livros do Google
O caso de digitalização de livros do Google refere-se a uma disputa legal envolvendo a iniciativa do Google de digitalizar e disponibilizar uma vasta coleção de livros por meio do seu Projeto Biblioteca Google Books. Em 2004, o Google começou a digitalizar milhões de livros de diversas bibliotecas, permitindo que os usuários pesquisassem e visualizassem trechos desses livros online. No entanto, esse projeto enfrentou desafios legais de autores e editoras que alegaram que a digitalização feita pelo Google sem permissão explícita constituía infração de direitos autorais.
O caso teve início em 2005, quando a Authors Guild e várias editoras entraram com um processo coletivo contra o Google, alegando que o projeto de digitalização de livros violava seus direitos autorais. O caso foi inicialmente resolvido em 2008, quando o Google concordou em pagar US$ 125 milhões aos autores e criar um Registro de Direitos Autorais de Livros para distribuir royalties a autores e editoras. No entanto, esse acordo foi rejeitado pelo Juiz Denny Chin em 2011, que considerou injusto para os detentores de direitos que não optaram por sair do processo coletivo.
O caso culminou em uma decisão histórica do Tribunal de Apelações dos Estados Unidos para o Segundo Circuito em 2015. O tribunal decidiu que o projeto de digitalização de livros do Google se encaixava na doutrina de “uso justo”, permitindo que o Google continuasse a digitalizar livros sem obter permissão dos detentores de direitos autorais. O tribunal argumentou que o uso dos livros digitalizados pelo Google tinha natureza transformadora, fornecendo uma ferramenta valiosa de pesquisa e não substituindo os livros originais. A decisão do Segundo Circuito confirmou a decisão do Juiz Chin em 2013, que concedeu um julgamento sumário ao Google com base no “uso justo”.
O caso de digitalização de livros do Google tem implicações significativas para os limites do “uso justo” na era digital. Ele estabeleceu que usos transformadores de obras protegidas por direitos autorais, especialmente para fins educacionais e de pesquisa, podem ser considerados “uso justo”, mesmo que envolvam a digitalização completa de livros. Esse caso teve um impacto duradouro nas discussões sobre a digitalização do patrimônio cultural e o acesso à informação no mundo digital. A Suprema Corte recusou-se a analisar o caso em 2016, encerrando efetivamente a batalha legal e permitindo que o Google continuasse seu projeto de digitalização de livros sem mais desafios.
Caso da Fundação Andy Warhol
O Caso da Fundação Andy Warhol refere-se a uma disputa legal envolvendo a apropriação de uma fotografia pelo renomado artista pop americano Andy Warhol, a fim de criar uma série de obras de arte. Em 1964, o fotógrafo Lynn Goldsmith capturou uma imagem do ícone da música Prince, uma fotografia posteriormente licenciada para a revista Vanity Fair em 1984. Em 1984, Andy Warhol utilizou essa fotografia como base para produzir uma série de pinturas e serigrafias retratando Prince.
A contenda ganhou relevância em 2017, quando a Fundação Andy Warhol para as Artes Visuais ingressou com um processo contra Lynn Goldsmith. A fundação buscava um julgamento declaratório afirmando que as obras de Warhol não infringiam seus direitos autorais. Goldsmith, por sua vez, entrou com uma contrapartida, alegando que Warhol havia copiado sua fotografia sem autorização.
O desfecho inicial ocorreu em 2019, quando o Tribunal Distrital do Distrito Sul de Nova York decidiu em favor da fundação, considerando que as obras de Warhol eram transformadoras e se enquadravam no conceito de “uso justo”. Contudo, essa decisão foi revertida pelo Tribunal de Apelações do Segundo Circuito em 2021, que concluiu que as obras de Warhol não eram suficientemente transformadoras e infringiam os direitos autorais de Goldsmith.
Essa decisão do Tribunal de Apelações do Segundo Circuito baseou-se em uma reinterpretação de uma decisão anterior, o caso Cariou v. Prince (2013), que estabeleceu que uma obra secundária não é necessariamente transformadora apenas por ter uma estética diferente da original. O tribunal enfatizou que a finalidade e o significado da obra secundária devem ser distintos da obra original, e que o impacto no mercado da obra secundária também deve ser considerado.
É relevante notar que a Suprema Corte recusou-se a analisar o caso em 2021, deixando a decisão do Tribunal de Apelações do Segundo Circuito como a palavra final sobre o assunto. O Caso da Fundação Andy Warhol também tem implicações importantes para os limites do conceito de “uso justo” e para a discussão sobre apropriação de obras de arte na era contemporânea, destacando a complexidade de avaliar a transformação de obras derivadas e a necessidade de considerar múltiplos fatores ao determinar a violação de direitos autorais.
News
Report: Potential NYT lawsuit could force OpenAI to wipe ChatGPT and start over | Ars Technica
OpenAI Doesn’t Care about NYT Enough…because Google does.
New York Times Reportedly Considering Lawsuit That Could Throw OpenAI Into Chaos.
Referências
Appel, G., Neelbauer, J. and Schweidel, D.A. (2023) ‘Generative AI has an intellectual property problem’, Harvard Business Review, 7 April.
European Commission (2020) Study on copyright and new technologies. Luxembourg: Publications Office of the European Union.
Gervais, D.J. (2021) ‘The Human Cause’, Vanderbilt Law Research Paper No. 21-39, Forthcoming Chapter in Research Handbooks on Intellectual Property and Artificial Intelligence (R. Abbott, ed), pp. 1-25
Salah, K., Nizamuddin, N., Al-Fuqaha, A. and Guizani, M. (2019) ‘Convergence of blockchain, IoT, and AI’, Frontiers in Blockchain, 2(27), pp. 1-18.
Copyright 2024 AI-Talks.org